sexta-feira, 1 de abril de 2011

texto Tambor na pesquisa do Geperformancepoa

Performance criada para o curso de Extensão Africanidades: história, arte e cultura, promovido pelo Núcleo de Pesquisa em História da UFRGS, e realizado no Memorial do Rio Grande do Sul, Brasil, 2009. Posterormente apresentado em 2010 no Odomodê-Instituto Cultural Afro-Sul, Rio Grande do Sul, Brasil.

tambor

      Fernanda Stein[1]
Patrícia Soso
Rosemary Brum

Tambor trata da questão das africanidades, enfocando a vinda do trabalho escravo ao Brasil e sua busca pela liberdade. Tambor é uma dance-performance que encerra um desafio: como três mulheres brasileiras e brancas, descendentes de europeus, poderiam tratar desta questão. O músico convidado foi Paulo Romeu[2].
A performance Tambor começa com o soar do tambor djambê e aos poucos surgem as três performers vindas de pontos distintos; o público é convocado a criar o espaço da ação, sendo imediatamente envolvido nela.O pesado saco de areia que nós carregamos cria trajetórias aleatórias em torno do público que, em pé, assiste à ação e onde o conceito de uma psicogeografia afetiva estabelece-se. Forma-se o círculo em torno das performers e do músico com o seu djambé, ao centro.[3]
A intensidade emocional acelera-se à medida que a ação provocada é instalada no público. Fazemos agir um conceito quando produzimos esse estado de ética onde as artistas testemunham como arquivos vivos, o processo, a ação e seus efeitos. Há zonas de desconforto e de tensão, há espessamento no presente. Quer-se fugir ao drama, mas ao mesmo tempo a atenção é toda solicitada na agoridade, há um estado de plena atenção e flutuação.
 Areia aqui sugere os oceanos e caminhos da África, as trilhas de mercadores e de mercadorias até o Brasil. Areia/cotidiano; areia/alimento. A areia é símbolo, a areia que foi trazida nos porões dos navios negreiros, a areia que vem junto com mar que nos separa e que nos une. A areia como símbolo de passagem de tempo, de escoamento de tempo. A areia carregada pelos ombros e lombos de homens-mulas.
A areia começa a deixar um rastro, os sacos se esvaziam e descrevemos uma trajetória desenhada no chão, seja no piso de mármore do Memorial do RS, seja no calçamento irregular do Odomodê, causando certo sacrifício ao tato. A cartografia experimental realiza corpos alargados, em conexão com a platéia.
O espaço visto criticamente finca a escravidão na formação do povo brasileiro; é o nosso embodied transportado. Corpos em transporte, jornadas afetivas que engendraram historicamente esse mapa cultural, questionado hoje. [4]
Nicolas Bourriaud (2010), para além de sua Estética Relacional (1998), fala-nos de uma altermodern- quando alter, que significa o outro, evoca igualmente a multitude. Seria a atitude política na qual a alter-globalização é uma constelação de lutas locais que visam combater a homogeneidade mundial e cultural.  
 Na cena, a batida do tambor aumenta em ritmo e as performers formam um círculo em torno do homem-tambor, funcionando este como catalisador magnético, constituindo uma espécie de sistema solar. Com a exaustão, as performers pausam.
Importante aqui é o som do tambor djambé a comandar a ação. Como um lugar da palavra, do lamento. Lentamente, a batida do tambor recomeça, o espaço já é outro, está reconfigurado pelos desenhos deixados pela areia. Uma nova geografia estabeleceu-se. Ele não está mais no seu lugar de origem. É o estrangeiro.
Inicia-se, então, o carregamento de corpos. Aqui, o corpo da performer ao ser carregado com violência de um lado a outro do espaço, perde sua característica humana, simboliza o homem que oprimiu, desbravou, colonizou, impôs a sua vontade em detrimento de quaisquer outras. O corpo carregado simboliza o homem-mercadoria, o homem negro que foi visto como mão de obra para construir um mundo pensado pelo branco. O homem que era visto somente como mãos e pés, um elemento desconectado de vontade, sem identidade, sem vontade, servindo ao homem-conquistador.
Quando o ritmo do som do tambor cresce em intensidade e provoca no corpo carregado uma mudança de atitude, acreditamos estar diante de um movimento emancipador. A performer começa a reagir e de “mercadoria” passiva passa a rebelar-se contra esta condição, criando uma atmosfera vibrante em que caça e caçadores se misturam neste universo criado pela areia e pelo som inebriante do tambor.
Premeditamos que esses elementos: movimento, corrida, som, corpos no espaço, música cada vez mais intensa conduzam a sensibilidade onde a ação atinge o seu ápice, quando o corpo perseguido escapa e busca sua liberdade em um novo local, fora deste território previamente criado.
 Abre-se uma brecha para o novo, o inusitado, a pausa. Não há mais som, movimento, caçada. As três performers abrem-se para o momento presente e o final permite ao público penetrar nesta suspensão da ação, onde não se pré-determina o que vai acontecer.
Em Tambor discutimos desde outra perspectiva as concepções de corpo / espaço / tempo / presença pesquisadas pelo coletivo. Também geramos documentos no deslocamento hoptic to hapitc e vice-versa, e pelas apresentações em dois distintos lugares embaralhamos nossas próprias referências sensoriais em novas cartografias afetivas.  
Exploramos as percepções ambientais, o “dar a ver” conforme Didi-Huberman, ajudando-nos a perceber na discussão sobre a aura benjaminiana e a imagem dialética, como toda visão efetua-se algures no espaço tátil.[5]
Se “dar a ver é inquietar o ver”, tivemos extremo cuidado para que o Tambor mantivesse sua proposta enquanto uma performance, não uma representação. Na sua carga histórica-social-política os deslocamentos humanos apontados tais como as diásporas históricas e contemporâneas, interagem com a experiência de ação. Geramos no Tambor movimentos da emoção, no terreno das novas sensibilidades que nos permite ‘navegar’ por entre diversos sentidos da função da pele, entre nós e o ambiente, estendendo nossos corpos para sentir seu próprio movimento no espaço. Tivemos a experiência direta da reconfiguração do espaço de recepção, uma vez que o local de apresentação requereu rearranjos cenográficos. A intensa emoção que o trabalho convoca, da parte das performers e de público potencializa o espaço urbano/ social. A recuperação da ação convoca o outro à presença, estabelecendo experiência compartilhada
Também indicamos o ‘novo efêmero que quer ser memória’ – abrindo a discussão sobre o registro da performance e sua validade enquanto arte do efêmero. Diferenças marcantes entre os dois registros em vídeo: o registro quase performático do segundo vídeo - o olhar do performer enquanto registra a ação – sujeito da ação – o corpo-câmera na performance. O processo de documentação (vídeo e fotografia) parte do registro como elemento de documento de si, de como o grupo se auto-representa.
Trata-se da busca de ferramentas para os nosso conceitos artísticos diante de uma lógica criativa (construção e desconstrução) para a performance. Não se pretende que essas imagens sejam já operadoras – isto é, que relacionem entre o todo e as partes, entre uma visibilidade e um poder de significação, entre expectativas e o que acontece para satisfazê-la, como um filme de Bresson (no sentido de Rancière). Apenas é um caminho onde as formas visíveis carregam um significado a ser construído ou subtraído em nossa pesquisa doravante. O movimento de câmera antecipa o espetáculo Tambor, mas nos revela outro diferente que ainda temos que colocar como imagens artísticas ou não, e mais ainda, enfrentar o regime de imagens e sua alteridade identitária. Como nos diz Rancière (2007), “a imagem é tripla: imagem, semelhança e hiper-semelhança”. 
A performance Tambor coloca-nos diante do conceito de corpo-presença ao vivo, entre conceitos das artes visuais (corpo imaginarizado) e as artes cênicas (corpo treinado). Para nós, esses registros nos auxiliam efetivamente no processo de pesquisa[6] também de uma performance da memória das lacunas.
Body, performance (ação ) e live– ao vivo traduzem os conceitos operacionais de mais que um gênero, é uma ação política e visa um destinatário. Enfim Tambor fala de um tema atual e discute estas trajetórias entre continentes, as imigrações e seus variados motivos, tendo como ponto de partida a questão das africanidades contida em cada cidadão brasileiro, sendo ele de origem africana ou não.















[1] Todas componentes do GEPERFORMANCEPOA. Fernanda Stein, formada em Ciências Sociais,  bailarina clássica e formada no Martha Graham School of Contemporary Dance, (NY) e no Instituto Internacional da Marionete - Charlesville – Mèziére (France), coordenadora pedagógica do Espaço Meme, Centro Experimental do Movimento; Patrícia Soso, formada em Ciências Jurídicas, atriz formada pela Scuola di Teatro Arsenale, em Milão/Itália; Niura Borges, Mestre em Artes Visuais (UFRGS), Especialista em Artes Visuais  (FEEVALE); Rosemary F. Brum, Mestre em Sociologia (UFRGS) e Dra. em História (PUCRS), vice-líder do grupo de Pesquisa do CNPq Interartes: processos interartísticos e estudos de performance, cujo líder é Márcio Pizarro Noronha (UFG).


[2] Foi realizada inicialmente para o Curso de Extensão em História: Africanidades: história, arte e cultura promoção do Núcleo de pesquisa em História do IFCH/UFRGS, em 2009. E realizado no Memorial do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Posteriormente reapresentado em 2010 no Odomodê - Instituto Cultural Afro-Sul, Porto Alegre.

[3] Mantendo a mesma disposição, no ambiente da segunda apresentação, no Odomodê, talvez por ser um espaço descontraído e local de vivência da cultura religiosa, as pessoas que assistiam estendiam as mãos e benziam-se com a areia que escorria das mãos de uma das performer.
[4] Estabelecemos essa geografia sensível e relacional, nos termos de BRUNO, Giuliana, Atlas of Emotion. Journeys in Art, Architecture, and Film. Verso:London, 2007. A percepção que gerou o conceito haptic deve-se à Alois Riegl. Também construímos o trabalho com BOURRIAUD, Nicolas. Relational Aesthetics.Les presses du reel.Paris, 2002. RANCIÈRE, Jacques.The future of the image. Verso:Londres, 2007. COSTELLO, Diarmuid; WILLSDON, Dominic. The life and death of images. Ethics and Aesthetics. Tate:London. 2008.

[5] Merleau-Ponty in DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998. p.177.

[6] Aqui agradecemos ao prof. Dr. Marcio Noronha, em curso ministrado em Porto Alegre, RS, Brasil, em 2009, no Espaço Centro de Pesquisa do Movimento - MEME, coordenado pelo bailarino e coreógrafo Paulo Guimaraes.

2 comentários:

  1. Date: Thu, 23 Dec 2010 17:11:03 -0800
    From: arilsondsg@yahoo.com.br
    Subject: Res: nosso grupo de performance para a Revista de Baurú em breve
    To: rosebrum@hotmail.com


    Oi, Rose
    Simplesmente fantástico o material.
    A partir destas leituras, o instigante tomou conta de minhas reflexões, quanto, principalmente a importância do corpo. Do movimento do corpo. A corporeidade e suas relações com o espaço, real ou virtual, pareceu-me algo tão complexo, quanto a simplicidade de não nos darmos conta do que somos e de nossa força enquanto matéria em constantes interações. Obviamente, que ao ler o material, percebi que além dos simbolismos visualizáveis e representados na performance, existe a complexidade da inter-relação entre o espaço e o corpo. Além de um espaço vazio ou um corpo sem movimento, ambos coexistem em uma ocupação deste espaço e de um corpo que atua nele, com afeto e sensações, permitindo nosso olhar envolto também em sentidos e sentimentos, e com isto uma sensação de vida intensa neste espaço visivelmente ocupado.
    Quanto ao texto do tambor, olha, assistindo a trama novamente, apos a leitura, confesso que a minha relaçao com a Performance, que já era de admiração, tranformou-se em lição. Lição de vida e de respeito a pesquisa realizada por vocês em que a competência encontra a humildade, e com isto representações corporais de pessoas dignas da arte e da humanidade que carregam, independentemente de suas epidermes. O sentido do pulsar do tambor ecoa em ambos corações, bastando sermos humanos. Quanto aos aspectos da ação, da revolta, da tomada de consciência humana? Lembro da performance de vocês como se estivesse assitindo no momento da leitura do texto. Que artigo maravilhosamente teorizado em cima da prática realizada, hein, Rose!
    Amiga, sensacional. Perdoe-me a demora da leitura e as possíveis falhas teóricas em minhas reflexões, já que conheço muito pouco deste campo mas escrevo em cima de minhas impressões acerca do material lido e refletido.

    Reforço o desejo de um Natal maravilhoso, com muita saúde e paz.
    Abraços e muitas considerações,
    Arilson.

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  2. textos publicados em 2010
    issu.com/felipeohmo/docs/apart
    Revista part, além do conceitual
    Baurú, São Paulo

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