Sentada em uma das poltronas daquele voo, seu coração batia
acelerado. Tentou recontar o tempo desde que havia saído do Brasil: 17,
18 horas, não tinha certeza. Estava ansiosa e enjoada. Os minutos
passavam e nada acontecia. Ajeitou-se no assento. O tempo congelou, como
que agarrado aos ponteiros do relógio. Olhava rapidamente para os lados
e já não disfarçava o pavor. Fechou os olhos e respirou. Antes de
levantar e ir em direção à aeromoça, se rendeu à frase que espreitava
seus lábios: “Isso foi a maior besteira que fiz em minha vida”. Mirou a
funcionária sorridente que disse: “Olá, posso te ajudar?”, “Sim, posso
te contar um segredo?”, e atalhou: “Estou com 54 cápsulas de cocaína no
meu estômago”.
Esse episódio aconteceu com Iza Monteiro, na Alemanha, em 2009. Ela
passou mal durante a conexão que seguia para Holanda. Ao confessar que
carregava drogas dentro do seu corpo, Iza iniciaria uma jornada de dor e
culpa. Na terça-feira da semana passada, sua história foi contada
durante a extensa programação do
8º Encontro do Instituto Hemisférico de Performance & Política.
Em torno das 23h, o terceiro andar da Sede Roosevelt da SP Escola de
Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco já estava pronto para
assistir a “Estéticas do Desejo: 12 com Iza”: Uma mesa e duas cadeiras,
uvas sob a mesa e enfeites natalinos – o ano novo hispânico . Ela sentou
ao lado do colombiano Carlos Monroy enquanto aguardava o público se
acomodar no espaço.
Quando tudo estava pronto, ele iniciou: “Durante a passagem do Ano
Novo, os hispânicos têm o costume de comer 12 uvas, representando os 12
meses do ano, e fazer um pedido para cada mês”, explicou enquanto
distribuía as frutas ao o público. “Vamos imaginar que estamos prestes a
comemorar a passagem do ano e contar os segundos. Quando chegar a hora,
façam um pedido e comam uma uva”, ensinou.
No intervalo para o “Ano Novo”, Monroy perguntou ao público onde
estavam durante a chegada de 2013. Algumas pessoas compartilharam
praias, sítios e amores até que ele interrompeu: “Faltam 10 segundos
para o Ano Novo. Vamos contar?”. E as vozes se uniram. 10, 9, 8, 7, 6,
5, 4, 3, 2, 1... Aplausos, gritos, abraços e sorrisos. E a plateia,
ainda reticente, entrou de vez no clima, naquela pequenina bolha
atemporal. Iza apenas observava e sorria.
Atualmente, ela é cristã protestante, dona de um salão de
cabeleireiro e casada com um sueco há pouco mais de 4 anos. Ao final da
performance, confessou que estava feliz e também preocupada. “Fiquei
imaginando se o Carlos ficaria bem, e se as pessoas entenderiam o que
passei”, disse. Os dois se conheceram por amigos em comum e no primeiro
dia Iza contou o fato a Carlos. “Já fazia mais de meia hora que
estávamos conversando e eu não sabia o que pensar, nem acreditava que
era ela”, lembrou ele. Quando se convenceu, a reação foi óbvia:
“Precisamos contar isso para mais pessoas. O que você viveu é incrível e
precisa ser conhecido”.
De volta ao terceiro andar, tudo seguia em comemoração. A atenção
voltou-se a Carlos quando o colombiano segurou uma uva e uma taça com
água, olhou para todos e disse: “A wish!” (um desejo), e engoliu a
fruta, sem mastigar. Iza, atenta, não conseguiu disfarçar ansiedade.
Monroy tomou um gole e olhou para ela. Ele passava bem.
Diferente dele, aquele dia não tinha sido fácil para Iza. O plano era
que ambos participassem da performance. Os dois já estavam sem comer há
muitas horas e à tarde, ela “ensaiou” engolindo uma uva. Momentos
depois, foi levada ao hospital. “Fiquei preocupado com ela e decidimos
que apenas eu participaria”, contou Carlos.
Carlos Monroy de costas, à esquerda e Iza Monteiro, à frente (Foto: Arquivo SP Escola de Teatro)
A performance seguiu, enquanto a dupla conversava com a plateia. Iza
narrou os fatos que se seguiram à confissão: “A polícia me prendeu e
fiquei num pequeno ambulatório no aeroporto, recebendo soro. Lá eu já
tinha vomitado muitas capsulas, mas ainda sobraram 17. Fui levada ao
hospital para que retirassem o restante. Perdi 4 metros de intestino e
fiquei em coma por mais de duas semanas”, relembrou ao mostrar a
cicatriz.
E aos poucos, expressões de choque se distribuíam pelas faces do
presentes. Eles queriam detalhes da hiostória, Carlos segurava uma uva,
enquanto Iza respondia, dizia “a wish” e um tomava gole d’água. Perto
das 10 uvas, Carlos já tinha dificuldades, mas a ação ainda se repetiu
por muitas vezes. “Acho que engoli mais de 20 uvas”, contou Monroy.
Quando se recuperou da cirurgia, Iza foi chamada para depor:
“Confessei tudo, que tinha servido de mula, e mais, mula isca. Colocaram
uma cápsula aberta para que se rompesse no meu estômago. No meu voo
tinha mais 40 mulas e enquanto eu saía, denunciei todas”, afirmou. Iza
foi julgada inocente e a quadrilha foi presa. Passou dois anos na
Alemanha fazendo serviços comunitários, estudou e conheceu seu marido.
Nesse momento a pergunta que todos queriam fazer foi feita: “Por
quê?”. A família de Iza era evangélica quando se assumiu homossexual.
“Fui reprimida e tinha que namorar meninas, me diziam que iria para o
inferno. Deus era um monstro para mim”, contou. Diante desse cenário,
ela passou a se distanciar da igreja até que descobriu o serviço de
mula. “Achei que aquilo iria mudar minha vida para sempre”, e
ironicamente completa: “E mudou mesmo, agora para melhor”.
Em torno de tantos desejos por aceitação e uma sexualidade em
harmonia, Carlos conectou a performance sobre o passado de Iza ao Ano
Novo hispânico. “Penso que a cada cápsula que ela engolia, havia sonhos e
vontade de viver. E também os desejos de quem oferecia aquele trabalho,
desejos cruéis que orbitam no dinheiro, no crime e nas drogas”,
explicou.
Perto das 25 uvas, Carlos anunciou a última. Visivelmente afetado,
ele agradeceu: “A sensação é muito ruim. O corpo não aceita essa
imposição, imagino um pouco do que ela tenha sofrido. Mas também fico
feliz por essa chance de ‘por os sapatos do outro’, de sentir o que o
outro sente. E para mim basta: a wish”, e engoliu a última sob aplausos.
Enquanto se abraçavam, mais uma pergunta: “E o que Deus significa
para você, agora?” Iza para, pensa um pouco e responde: “Frequento uma
igreja que me aceitam como sou. Quanto a Deus, ele não é mal quanto me
faziam pensar. Ele é visto na bondade das pessoas, em ajudar os outros.
Talvez ele não exista também, mas se existir é alguém muito amoroso”,
finalizou sorrindo.
Texto: Leandro Nunes
SP Escola de Teatro - Centro de Formação das Artes do Palco
24/01/2013