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Desvio que sinaliza caminhos na dança gaúcha
As cinco pedrinhas para vencer o demônio. Cidinha
Campos enfurecida contra a corrupção. As confissões sobre ser ou não ser dos
que, sexualmente, são. As dúvidas quânticas de Gilberto Gil. A hercúlea e
renegada tarefa de salvar a humanidade com quadro negro e giz. Mãe Duchampa pra
abrir as portas das galerias, trazer o curador e a inspiração. A emergência da
dança como área de trabalho e os vocabulários que ela oferece ao novo contexto
cultural. Enquanto o áudio retumba todas essas provocações, o vídeo expõe
imagens do processo de criação de Desvio, o novo trabalho da
Muovere Cia de Dança, que estreou nesta semana, no estacionamento do Centro
Municipal de Cultura de Porto Alegre.
As tais imagens do vídeo, espécie de prólogo do
trabalho, contextualizam o processo de pesquisa que resultou no espetáculo. Ele
começou em outubro de 2011, com improvisações dos bailarinos em espaços de
retenção de semáforos da Capital gaúcha. Nesse vaivém urbano, os intérpretes
aparecem correndo, puxando-se, arrastando-se. Depois, parte dessas situações,
mais de 200, foi registrada em
vídeo. Dessas, 45 foram lançados à votação do público através
do site do projeto, entre janeiro e fevereiro, incluindo os tais áudios de
interesse público.
Aproximando as movimentações experimentadas na
rua, mais o interesse votado pelos internautas, deu-se a quântica dessa
experiência coreográfica dinâmica e inventiva, que tem vários acertos. O
primeiro deles é essa capacidade de se deixar permear pelo ambiente da cidade.
“Calvinete”, como se define Jussara Miranda, diretora da companhia, ela busca
na obra de Ítalo Calvino uma das potências para suas provocações e ações
artísticas. Agora, como em Bild, espetáculo de 2001, o invisível das cidades é
referência para tatear, corporalmente, possibilidades de mobilidade que se
traduzam em poéticas da e para a dança. Corpo e ambiente em trocas constantes,
diriam Katz e Greiner.
De fato, essa possibilidade da urbe virar espaço
de criação é uma das riquezas desse Desvio. A rota de ação da
Muovere é de inclusão dos ruídos do entorno, das dificuldades do trânsito
caótico, das barreiras que as massas humanas viram para o livre flanar nessa
paisagem. Esse é o material das corridas (des)ordenadas dos bailarinos em cena,
dos encontros ríspidos-rápidos que executam, das contorções, encaixes e
desencaixes vigorosos da obra. E, sobre tudo, da delicada visceralidade como
são apresentados. Corpo e cidade, ordenamentos e desbobramentos, são o contexto
potente que é levado agora à cena.
O trabalho é orquestrado pela pesquisa de
procedimentos coreográficos de Jussara, que busca na poética da cidade um dos
vetores de suas criações, mais o interesse de Diego Mac na aproximação da dança
com as artes visuais, e da diretora Jezebel De Carli, que atua com enfoque no
teatro físico. Voltando a outro trabalho da Muovere, Re-Sinto
(2008), encontra-se lá a: “sou o espaço onde estou”. É também por esse mote que
podemos entender (e aplaudir!) Desvio. A junção de dança, artes
visuais e teatro contextualiza um ambiente criativo e de prazeroso resultado.
Ambientada no estacionamento do Centro de
Cultura, a montagem toma partido de tudo o que o espaço oferece. As linhas
desenhadas no chão para orientar os veículos são, agora, vetores de ação dos
intérpretes. A luz reforça esses mapas de movimentação em alguns momentos,
esses riscos luminosos parecem quase flutuar. Mas há ali corpos em movimento,
num chão que acolhe esta experiência coreográfica reconfortante. E esses corpos
são divertidos, tensos, fluidos.
É particularmente significativo, também, que
mesmo trabalhando com muitos recursos corporais da dança de rua, a trilha
sonora pontuada por Vivaldi e a valsa do Lago dos Cisnes, de
Tchaikovsky, cria outras camadas de leituras. Há um pas de deux quebrado,
torto, ora suingado, irreverente, mas, ao mesmo tempo, de uma reverência plena
ao que, em termos de história, a dança produziu em sua trajetória de opções e
estéticas no Ocidente. A ponta que se vê ali citada aponta, sim, para as
incorporações possíveis, hoje, dos novos vocabulários para se trabalhar na
área.
Nesse sentido, Desvio também
acerta o caminho da construção compartilhada, incluindo na sua cena a cena do
entorno, numa acolhida ao(s) outro(s) do mundo. Na apresentação da estreia, foi
particularmente tocante a cena paralela de uma menina que, ao ver os bailarinos
em ação e ouvir os acordes da música, saiu dançando à sua maneira. Depois,
reuniu um grupo e aproximou-se, determinada a acomodar seu olhar aos “ruídos”
que, antes, poderiam estar atrapalhando a sua brincadeira de rua. Frame de uma
dança que aproxima, conquista, educa os sentidos. Flash de uma dança que
desacomoda para aquietar.
Montado com recursos do Fumproarte, o fundo
municipal destinado à produção artística de Porto Alegre, o novo trabalho da
Muovere fortalece a importância da ação de coletivos de criação. Amplia,
também, o significado da trajetória da Muovere, que existe há 23 anos. É uma
ação que enverga múltiplas pertinências: a principal delas é o de manter-se
inquieta, trabalhando com associações afetivas, apostando na capacidade de
aglutinar intérpretes criadores – os que estão agora em cena são Denis Gosch,
Letícia Paranhos, Wiliam de Freitas e Rossendo Rodrigues –, que fazem de seus
corpos uma escrita coreográfica, um manifesto de inserção no contexto da cidade
e da produção de pensamentos artísticos com a dança.
Nesse sentido, Merleau-Ponty acolhe a ideia de
que o corpo, como um objeto artístico, é um ponto de vista sobre o mundo. Ele
reconhece que estamos em um mundo que, ao mesmo tempo em que parece nos
anteceder e ter existência independente, é inseparável de nós. É neste espaço,
nesta abertura entre o eu e o mundo, entre o interno e o externo, que se inauguram
condições de produção de pensamentos que, no caso de Desvio,
dançam duos, trios e tais num troca-troca entre dança, cidade, vídeo, vida,
arte.
Por estas nuances todas, o novo trabalho da
Muovere Cia de Dança é particularmente importante no contexto da produção
gaúcha de dança contemporânea e no contexto da cena brasileira. Ele situa
possibilidades de diálogos, educação do gosto, construção de parcerias e de
resistência artística. Essa é uma rede ainda em construção no Rio Grande do
Sul: talvez um pouco pela incapacidade dos grupos/coletivos dialogarem (ainda
que haja uma militância pelo Plano Estadual de Cultura e da Dança e no
Colegiado de Dança Estadual), e outro tanto pela ainda frágil ação pública no
setor. Mesmo assim, nas vertentes de ação da arte contemporânea, a Muovere
move-se com habilidade e particular competência.
Então, Desvio tem sinal verde,
pois encontrou caminho e vocabulários possíveis para esse trânsito.
O espetáculo volta a ser apresentados dias 28 de
abril, às 20h, e 29 de abril, às 19h30min e 20h30min, sendo estas sessões
incluídas na programação do dança.com, da Secretaria Municipal de cultura de
Porto Alegre/ Centro de Dança.
Carlinhos Santos é historiador,
jornalista, crítico de dança, especialista em Corpo e Cultura: Ensino e Criação
pela Universidade de Caxias do Sul e mestrando do Programa de Pós-Graduação em
Educação (UCS). Também é titular da coluna 3por4, do Jornal Pioneiro, em Caxias
do Sul, RS.
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